Tic. Tac. Tic. 🕘

Levou a grande caneca listrada Ă  boca. Bebeu um, dois, trĂȘs, quatro longos goles e, quando a tirou da frente da face, seu campo visual se encheu de uma Gabriela recĂ©m chegada. A porta ainda estava aberta.

— EntĂŁo cĂȘ ainda tĂĄ bebendo


— Te garanto que Ă© a Ășltima vez.

— NĂŁo, Ju, sei que vocĂȘ nĂŁo muda. Duvido muito que seja a Ășltima vez.

JĂșlio colocou sua caneca em um mĂłvel e deixou-se sentar em uma poltrona. Ela possuĂ­a um semblante exausto, como se todas suas forças tivessem se esvaĂ­do gradativamente hĂĄ muito tempo atrĂĄs, sem retorno. JĂĄ ele parecia podre por fora e vazio por dentro.

— Realmente não quis ter feito aquilo.

— Se quer gratidĂŁo agora vocĂȘ nĂŁo terĂĄ.

— Sabe, sei que pode soar meio adolescente, mas tenho que dizer que mereci.

— NĂŁo. VocĂȘ nĂŁo mereceu. Aquilo foi pouco pra vocĂȘ. VocĂȘ merecia mais.

— Tanto faz.

Gabriela cerrou os pulsos e pegou fĂŽlego.

— Dei minha vida pra vocĂȘ. Virei as costas pros meus pais, briguei com meus amigos. Eu era a sua escrava. Sua cadela. VocĂȘ sempre foi um machistinha escroto. Sempre me controlou completamente.

— É.

A passividade de JĂșlio a incendiava por dentro.

— Tenho que pedir que vocĂȘ vĂĄ embora — ele falou, com uma voz Ă©bria.

Ela sentiu sua face arder com um tapa imaginĂĄrio.

— Mas o que porra passa na tua cabeça, filho duma puta? Caralho, eu simplesmente te dei tudo e vocĂȘ me agradece desse jeito!

JĂșlio fez um gesto breve e seu cabelo escondeu os olhos. Ainda sentado, pousou levemente a mĂŁo esquerda sobre o ventre.

— Essa sua baboseira existencial! Sua mania de dizer que tudo Ă© insignificante em relação ao universo, mas Ju, eu moro aqui, eu quero saber Ă© daqui, do agora!

JĂșlio riu.

— Acho que vocĂȘ tem razĂŁo — disse no meio de risadas soturnas.

— Qual Ă© a graça?

— A vida, sabe. É uma piada. É tudo uma piada.

Se houvesse como, Gabriela enrubesceria ainda mais.

— Como eu disse, vocĂȘ nĂŁo tem jeito. E eu notei isso. NĂŁo sinto sua falta


— Pare. Agora.

— 
 Não te amo mais.

Por poucos segundos, JĂșlio manteve-se estĂĄtico. EntĂŁo apertou sua barriga com a mĂŁo e começou a rir. Rir alto, quase histericamente. Tonto, cambaleou pelo apartamento. Gabriela assistia a cena com desprezo. Ao perder uma discussĂŁo ele costumava fingir ataques cardĂ­acos e outras traquitanas teatrais para obter a razĂŁo instantaneamente, mesmo sem merecĂȘ-la. Ela conhecia aquele velho e sĂłrdido truque. AtĂ© que ele vomitou violentamente. Tampou a boca com as mĂŁos como se guardasse o segredo da origem da vida em seu estĂŽmago. Fazendo isso, alguns cabelos brevemente saĂ­ram de sua face e ela pĂŽde ver que ele estava suando como um porco, olhos assustados como se tivesse mostrado a real intenção de sua alma. Gabriela ainda estava receosa de um truque, mas por impulso deu um passo pra frente. JĂșlio recuou trĂȘs. E uma explosĂŁo de vĂŽmito encontrou caminho por entre os dedos que tentavam fechar a boca. O cheiro era horrĂ­vel, agressivo e acre. O suor era facilmente visĂ­vel. Tremores abdominais se espalharam atĂ© consumirem o corpo inteiro. O chĂŁo de JĂșlio tornou-se inclinado e ele desabou.

Gabriela nĂŁo conseguia mais. Num pulo, evitou uma poça de vĂŽmito e colocou a mĂŁo no peito dele. Arritmia. Seus olhos estavam começando a virar. Os tremores viraram convulsĂŁo. Seus movimentos espalhavam o vĂŽmito de cheiro forte e respingos atingiam Gabriela. As convulsĂ”es amplificaram sua intensidade. JĂșlio, numa frenesi ensandecedora empurrou com sua mĂŁo encharcada a cabeça de Gabriela.

— FALEI PRA VOCÊ SAIR DAQUI.

Ela voou sem sair do lugar. Sua cabeça bateu no chão e naquele ùngulo ela pÎde dar mais atenção a um objeto que descansava no móvel no meio da sala. Uma caneca listrada. Num solavanco com o braço ela se levantou e esticou o braço. Cheirou a caneca. Ainda havia um pouco do líquido. Tinha dois níveis. Um transparente grosso e outro mais arenoso e amarelado.

Gabriela fechou os olhos.

Tic. Tac. Tic. Tac. Tic.

Os sons se dissiparam. O cheiro cessou. Ela não sentia nada. Era como se todas as células de seu organismo se encontrassem em um estado de explosiva inércia.

“Ele será liberto e não me levará junto”, pensou.

Ela abriu os olhos. Tudo retomou seu compasso.

JĂșlio estava começando a ter os movimentos prejudicados. O organismo havia acatado o que tinha ingerido. Gabriela ajoelhou-se perto dele. Ele ergueu seu braço direito e acariciou sua face. Com lĂĄgrimas nos olhos ela confessou:

— AlĂ©m de nĂŁo te amar mais, agora eu te desprezo.

Levantou-se. Passou pela porta. JĂșlio jazia. Sozinho.


2011

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