
No ônibus ela sorri.
Engolfados de uma luxúria ébria contida há anos, os dois desabam na cama e veem seus reflexos no teto. Ela tonta. Ele com o maxilar travando por causa dos comprimidos, suando frio, se controlando pra não transparecer pr’ela.
Quando o dia amanhece a realidade volta a girar as engrenagens do mundo. No ônibus ela sorri. Selam um beijo com gosto de “não sei quando haverá outro desses” e deslocam-se opostamente.
Universos dispostos, mas contrapontos contrapostos.
Conforme cada peça da noite anterior foi se montando em meio àquela névoa etílica, um medo foi crescendo no peito dele. Mais tarde, ela tranquiliza-o, atrás de uma tela pálida e letras pequenas.
— Lembra do nosso primeiro beijo?
— Lembro.
— Lembra do que a gente combinou?
— Lembro.
— Nada vai mudar!
— Nada vai mudar.
Nada vai mudar. A primeira vista um “nada vai mudar” foi tranquilizante. Exatamente o que precisava. “Nada” e “mudar” são concretismos bastante confortáveis pra quem sente algo e tem medo de perder. De simplesmente parar de sentir.
E é aí que mora o perigo.
O perigo de querer mais.
É pecado?
É errado?
Sentir mais o que se sente. Ter mais o que se tem. Nunca sentir tudo. Nunca ter tudo. Só um pouco mais. É demais? Isso caso aconteça!
“Nada vai mudar”.
Ele se irrita com a realidade, de novo.
Lembra das letras nos lençóis. Dos corpos que pareciam apenas um no teto. Do frio mecânico. Da gargalhada matinal.
Derruba a caneca de café. O líquido enxágua a mesa e vai se contornando em letras até formar sentenças:
“Hopelessly, I’ll love you endlessly
Hopelessly, I’ll give you everything
But I won’t give you up
I won’t let you down
And I don’t leave you falling
If the moment ever comes”
Ele dá uma risada por entre os dentes ainda trincados:
— Esses comprimidos são fodas…