TERMOS & CONDIÇÕES

CONSIDERE OUVIR ESSA TRILHA SUGERIDA EM PARALELO

Usei para criar o tom da história enquanto escrevia. É recheada majoritariamente de bandas instrumentais brasileiras com sonoridades que combinam perfeitamente com a atmosfera que criei. Organizada para acompanhar o ritmo progressivo e o clímax de Termos & Condições, a duração da lista foi calculada para cobrir com folga o tempo de leitura do texto.

OUÇA AGORA!


A selva de pedra megalopolitana se estende para além da linha do horizonte crepuscular, serpenteada por largas avenidas asfaltadas. Um luxuoso carro preto diminui sua velocidade até estacionar na entrada de um arranha-céu. Carregando compactas malas, descem do carro TALITA — fartos quadris, negra, cabelos encaracolados que cascateiam até seus ombros, média estatura e vestido rodado estampado com girassóis, 28 anos — e MORGANA — punk clichê caucasiana, alta e magricela, jeans surrado e camisa de banda, cabelo sidecut pintado com cores fortes, 25 anos — agradecendo ao motorista do aplicativo KRIEG.

– Pacote entregue. - notifica o motorista num rádio comunicador que logo volta ao porta-luvas ao mesmo tempo que sai de cena.

No portão Talita e Morgana comentam brevemente sobre os ares luxuosos que a entrada do prédio tem e passam por um corredor com algumas lâmpadas defeituosas. Talita nota o semblante estranho de Morgana e tenta extrair qual é o problema, sem sucesso. Um longo silêncio se estende até o fim do corredor na porta do elevador, até Talita tentar novamente descobrir qual é o problema que se passa com sua companheira. Enquanto o elevador sobe

trecho do roteiro

Imediatamente Morgana nota que sua argumentação enfática pesou a atmosfera de uma viagem que nada tinha a ver com sociopolítica. A ideia original era só curtir o show e ir embora. Ela tenta remendar argumentando que vai tentar deixar todos esses problemas de lado enquanto estiverem curtindo o apartamento alugado pela TerrainT. Talita salienta que elas só têm três dias naquele apê e que deveriam aproveitar do jeito mais distante possível da política possível: com sexo, drogas e tapiocas. Ela ativa a tranca eletrônica e ambas entram no apartamento.

Por dentro o apartamento tem ares de campo florestal com móveis rústicos de madeira e várias tonalidades e texturas selváticas.

Morgana abre uma das malas que está cheia de comida e começa a organizar a cozinha, distribuindo alimentos na geladeira e no balcão da pia. Nota que a parede atrás da geladeira é coberta por um gigantesco papel de parede de vegetação tropical fotorrealista. Paralelamente, Talita se joga na cama com o notebook no colo, fitando as paredes enquanto seu dispositivo liga.

Enquanto organiza os alimentos para começar a cozinhar, Morgana vê Talita agarrada ao PC e dá um grito, reclamando. Talita lembra à Morgana que está esperando um e-mail da universidade, verificando se algo chegou na sua caixa de entrada. Para uma momentânea surpresa, há de fato um novo e-mail, porém trata-se de um lembrete da empresa de aluguel TerrainT, solicitando ao usuário que verifique as últimas atualizações nos termos & condições de serviço sobre a utilização dos luxuosos apartamentos disponibilizados pela empresa. “Apenas um spam” diz uma frustrada Talita ,jogando o notebook na cama e vai desfazendo as malas que restaram.

Ela Distribui os pertences pelo apartamento, enquanto Morgana peneira goma de tapioca. Depois de zíperes e chamuscadas, sentam e comem no balcão da cozinha enquanto fitam a decoração do apartamento. Música toca na TV da sala, que exibe uma logo do AmpliFY.

Morgana sorri com a boca cheia de tapioca e cutuca o sovaco de Talita, que solta um urro e estapeia a namorada, enquanto esta continua a fazer cócegas. Claramente uma gosta de encher o saco da outra por esporte. Os urros de Talita se transformam em aterrorizantes e graves gargarejos guturais, totalmente contrastantes com sua aparência doce e delicada.

Depois de tapas, beijos. O que era uma grande cachorrada lentamente se transforma em carícias. Pouquíssimo antes de Talita e Morgana selarem seus lábios, a música agradável que toca na TV é rasgada por um som orquestral estrondante. Demoram vários segundos para as duas a reconhecerem: é o hino nacional braziliano.

Morgana corre para a TV. Talita mostra-se incomodada com o barulho, mas calmamente vai pegar água na geladeira. Já sua namorada mostra tanto desespero que aparenta sentir dores excruciantes. Tateia com nervosismo todos os lados do aparelho e não consegue desligá-lo. Não há nenhum cabo de força ou botão na TV blindada. Grita para Talita pausar no aplicativo. Com uma mão no copo de vidro com água e a outra no smartphone, Talita abre o AmpliFY. O aplicativo não responde aos comandos. Coloca o celular de volta no bolso. Ao ver o atordoamento da namorada, Talita grita o mais óbvio: “PROCURA O CONTROLE REMOTO, CARAI”.

Morgana dá um rápido giro com o olhar pelo recinto sem detectar o objeto. Começa a vasculhar primeiro pelo móvel abaixo da TV. Saca um pequeno pacote delicadamente envolto em uma flanela verde e amarela.

Ao mesmo tempo que o hino finaliza a primeira parte num clímax, uma pistola da marca Bufalus Brazilis é exibida nas mãos de Morgana.

Ambas fitam o pacote estarrecidas. Talita cai na gargalhada. Sem acreditar, pergunta para a namorada o motivo pelo qual deixariam uma arma de brinquedo ali. Morgana, com feições seríssimas comenta que, pelo peso, a arma parece ser de verdade. Antes que termine de falar uma explosão é cuspida da arma de fogo que estava bem perto de sua cabeça. O disparo acerta um mapa decorativo no meio do teto da sala. Com o susto, Talita voa e se choca com o canto da geladeira que se afasta da parede vários centímetros. O copo de vidro que segurava espatifa-se na entrada da cozinha. Ao levantar num pinote Talita vê Morgana caída no tapete do meio da sala, a pistola fumegante ao lado. Ela levanta, pula o copo quebrado e corre para checar Morgana que treme apoiando os braços no chão para se levantar. Ela resmunga que o tiro foi muito perto de seu ouvido esquerdo e consegue escutar suas células cilíadas morrendo. Notando a profunda cara perdida de Talita ela complementa “Aquele zumbido fino, pô!”.

Talita pira o cabeção, indignada sobre como um anfitrião daquele aplicativo poderia esquecer um revólver carregado ali. Saca o celular. Na tela, o sinal de rede está morto. Tenta entrar na internet, sem sucesso. Bufa e se levanta carregando a pistola pela coronha como quem carrega um rato pelo rabo, segurando na pontinha. Coloca a arma no balcão da cozinha, região central do apartamento. PARALELAMENTE, Morgana, deitada no mesmo canto e olhando para as paredes, nota um leve ruído de estática saindo dos alto falantes embutidos, que logo finda. Talita já está na cama, colocando o notebook no colo. Nota que também está sem internet no computador. Pira por estar ilhada naquele apartamento, em um lugar tão longe de casa. Antes de entrar em colapso, Morgana grita pedindo ajuda para levantar e Talita pula para perto dela. Ambas começam o protocolo para sair voadas daquele lugar, começando por juntar as suas coisas. Morgana vai ao banheiro e Talita pega o copo que tinha deixado na sala, seguindo para a cozinha, com o intuito de limpar os estilhaços ali deixados.

Lá, Talita salta os pedaços de vidro, pega a pá e uma vassoura, encostando-os no balcão e, de relance, fita o espaço da parede que a geladeira afastada revelou. Em choque, solta o copo que segurava, que se estatela exatamente no mesmo ponto que o outro havia caído. Dando meio passo para trás e com semblante de terror, a única palavra que escorre de sua boca é “BADALHOCA…!” Grita por Morgana e se assusta ao notar que precisamente no mesmo momento, Morgana grita seu nome.

PARALELAMENTE, buscando alívio com água corrente na pia do banheiro, Morgana lava o rosto e tenta tocar a orelha, soltando um guincho de dor. Pelo reflexo do espelho nota na parede atrás de si um pequeno painel mecânico com várias teclas numéricas e, ao seu lado, oculto atrás da porta, um símbolo que deixava apenas suas pontas serifadas expostas. Querendo ver melhor, Morgana aproxima seu rosto do espelho, até que se assusta quando seu nariz se choca com o vidro. Dá um pulo para trás da porta e revela o que estava atrás dela. Suas feições ficam desfiguradas conforme o horror preenche seu cérebro. Ela grita o nome de Talita para ouvir seu nome gritado de volta, novamente. Ambas se encontram na sala e Morgana arrasta Talita pro banheiro, mostrando o sigma (Σ) gigante, desenhado em cor azul, atrás da porta do banheiro. Talita não demonstra entender do que o símbolo se trata. Morgana bufa em desaprovação, mas não consegue repreendê-la por completo, já que Talita lhe arrasta até a cozinha e mostra o que há atrás da geladeira. Morgana quase se desfigura de ódio, mas só consegue emitir uma palavra: “BADALHOCA!”. O primeiro pico de pavor é atingido e ambas tentam fugir do apartamento, voltando para a porta de entrada, esmurrando a fechadura elétrica e entrando em frustração extrema por falharem.

Atrás da geladeira, cercada de várias folhagens florestais, está uma imagem da campanha eleitoral de Jairo Badalhoca, Líder Supremo dos Estados Unidos do Brazil.

Um revólver carregado no apartamento, o aspecto opressivo e rústico dos interiores, o hino nacional estrondando em todas as paredes, o símbolo integralista no banheiro… E um pôster gigantesco daquele na cozinha. Elas não precisavam de mais indícios de que estavam sob cárcere de um extremista político apologista ao Badalhoquismo, dono do apartamento.

Num estalo eletrônico uma sirene de quartel começa a soar, seguida novamente pelo hino nacional estrondando em todas as paredes do apartamento.Mais uma vez Morgana é envolvida por um pânico estarrecedor até que a música pára após a introdução e uma voz rouca com sotaque sudestino rasga o silêncio pelos alto falantes embutidos nas paredes. Depois de gastar todo seu fôlego com xingamentos sobre o posicionamento político e o alinhamento sexual das inquilinas, ele, que não se apresenta mas Talita e Morgana notam ser ASTOLFO, o proprietário do apartamento, as ameaça com um jogo mortal que havia sido preparado no recinto

“cuja única forma de escapar é conhecer a gloriosa revolução militar braziliana e aceitar Jesus que dói menos”.

Astolfo salienta que as janelas são seladas ao som — “não adianta nada gritar, meu”, e as trancas das portas são de titânio. Não há como sair dali de outra forma a não ser vencendo o jogo. Astolfo finaliza seu discurso prepotente, inflamado e toscamente misterioso, cuspindo informações desconexas sobre um X marcar o lugar, tesouros e baús. Os alto falantes se desligam. A primeira coisa que Morgana e Talita fazem é morrer de rir do jeito que Astolfo falava e como várias de suas frases se quebravam e não faziam sentido. Recuperando o fôlego, Morgana pega o revólver do balcão, verifica seu tambor e o prende atrás de sua calça. Talita tenta decifrar as informações recebidas, mas são tão confusas que ela não consegue identificar um ponto de partida. Seu olhar se perde como se procurasse pensamentos. Nesse devaneio olha exatamente para o buraco de bala que havia perfurado o mapa há momentos atrás. Ao lado do furo há um X vermelho, gigante, como em mapas do Mar dos Guelas, histórias infantojuvenis que ela ouvia em sua terra. Dá um soco no ombro de Morgana para que ela também perceba e logo as duas removem com cuidado o papel do teto, colocando-o no chão e analisando-o. Nada faz sentido. O mapa é tão genérico que parece ter sido comprado em lojas de departamento, com métricas estranhas e nem uma palavra escrita que ajudasse a identificá-lo. Talita ainda se emaranha em resquícios de raciocínio, sem muito êxito. Morgana regurgita alguma das informações que Astolfo falou e trava em “tesouros e baús”. Lembra do quadrado na parede que possuía um display eletrônico com números e corre para o banheiro, desferindo algumas possibilidades aleatórias de quatro dígitos no painel do cofre, sem êxito. Frustra-se, até lembrar do trecho do discurso de Astolfo: “gloriosa revolução militar braziliana”. Ao digitar 1–9–6–5 no painel, a luz vermelha torna-se verde. A porta do cofre abre como forno de fogão, de cima para baixo, sofrendo um forte impacto quando pendurada pelas correntes em suas laterais. Com o solavanco, uma arma de fogo presa na lateral da porta dispara.

O tiro explode no quadril de Morgana que instantaneamente se torna uma fonte escarlate. Ela cai por cima da privada atrás de si, deixando um rastro de sangue nas pastilhas brancas do piso enquanto o cano de ferro cospe uma leve fumaça.

Uma risada rouca é ouvida por todas as paredes do apartamento. Aparentemente, de onde quer que esteja, Astolfo diverte-se.

Passos pesados são ouvidos e tornam-se cada vez mais rápidos e mais altos até Talita quase romper a barreira do som, atravessando a porta do banheiro, escorregando no tapetinho do box. Equilibra-se rapidamente, calcula o que aconteceu numa ágil varredura com os olhos e vai acudir Morgana que tenta estancar o recente ferimento com as mãos. Talita vasculha o móvel abaixo do espelho e encontra gaze, álcool e outros materiais de primeiros socorros que permitem que ela logo comece a montar as bandagens. Nota que o tiro por sorte foi de raspão e não atingiu nenhum osso. Obviamente mal e em choque Morgana diz que está bem, tenta levantar e quase cai com a pressão no calcanhar. Talita lhe ajuda a sair do banheiro, mas quando passam na frente do cofre aberto notam seu conteúdo diverso ao lado da arma.

Talita estaciona Morgana na parede e evita a linha de tiro da arma para chegar ao cofre. Há várias pastas lá. Talita pega uma delas, aleatoriamente. Olha sua capa, intitulada CECÍLIA PONTES. “Acho que já vi essa mina em algum lugar, recentemente…”. Ela abre a pasta na aba CONEXÕES e nota, pelos dados da TerrainT disponíveis, que tinha visto aquele mesmo perfil discorrendo sobre o apartamento na caixa de comentários do serviço, quando ainda estava pesquisando onde ficar naquela cidade. Imediatamente desliza seus dedos até a letra T e acha uma pasta etiquetada TALITA PEREIRA CHAVIER. Saca e abre a pasta, horrorizando-se. Joga a pasta para Morgana e desliza agora para M, achando MORGANA ALVES BAHETO. Abre a pasta.

Um chão do banheiro bagunçado com ladrilhos que montam um padrão de suásticas tem acima de si uma pasta de papel com a capa evidenciando o nome de TALITA PEREIRA CHAVIER, fotos instantâneas estão anexadas na pasta com um grampo de papel. A pasta é dividida em três categorias: "Perfil", "Conexões" e "Finanças". Em cima da pasta há uma sub metralhadora com a trava de segurança fechada. Abaixo dela, um pote de analgésicos está aberta, com comprimidos jogados. Há também duas gases no chão. Acima de tudo há vários pingos de sangue

O que ambas veem é um dossiê extremamente denso de todas as informações que ambas possuíam na internet. Não apenas o que elas deixavam exposto em suas redes sociais, mas e-mails, transações bancárias e conversas sigilosas que supostamente eram criptografadas. Aparentemente Astolfo havia invadido suas contas — e de outras dezenas de pessoas — prospectando e atraindo-as por meio de uma vulnerabilidade de seus perfis no serviço TerrainT.

A injeção de medo, dor e adrenalina nas veias de Morgana é tão intensa que ela literalmente se põe de pé num pulo e grita para sua namorada:

“VAMOS VASCULHAR ESSA MERDA TODA E ACHAR AS PISTAS O MAIS RÁPIDO POSSÍVEL QUE EU NÃO AGUENTO MAIS ESSA MIZERA DE LUGAR”.

Num ímpeto que virtualmente ignorou seu ferimento, Morgana marcha para o cofre e desprende a arma. Puxa uma alavanca que a faz cuspir uma cápsula vazia e levanta uma língua que faz o equipamento estalar. Pasma com a habilidade da namorada com o trambolho Talita pergunta onde ela aprendeu a usar fuzis. Morgana por sua vez a corrige:

“pelo tamanho do cano é uma carabina. Antes da Onda Badalhoca me preparei lendo o Macroguia do Guerrilheiro das Galáxias”, diz. “E jogando Call of Strike”.

Capa do jogo Counter Strike 1.6 com filtro verde

Ambas vasculham furiosamente todo o apartamento, espalhando no chão todos os pertences guardados em locais fechados. Num armário perto da cama do lado de uma foto autografada da cantora PEDRO ESCOBAR Talita acha um dildo de 40cm, marrom chocolate. Imediatamente uma tossida forçada irrompe pelos alto falantes. Astolfo aparenta desconforto: “Erm… Vocês não deveriam ter achado isso…”. A voz some. Depois de poucos segundos, ele complementa: “Isso não é meu, tá ok? Não sei o que é isso, deve ter sido deixado por outros hóspedes. Só pode ter sido isso”.

Além dos que realmente aparentavam ser objetos normais de um apartamento, elas encontram fardamentos militares, munição tanto para o revólver quanto para carabina, ampolas sem identificação, uma caixa cilíndrica dourada com várias faixas letradas e metros de papel milimetrado com anotações ininteligíveis. Talita inflama-se, reconhecendo o cilindro. “É sério que esse cara é incompetente o bastante de usar a mesma caralha do Código DaVinci? Custava pelo menos tentar fazer um jogo mortal original?” Analisando melhor o cilindro, inflama-se ainda mais ao identificar a inscrição “MADE IN CHINA?”. Explodindo de raiva, ela pisa no cilindro, que é esmagado e exibe seu conteúdo: um rolinho de papel com uma mensagem em volta de uma pedra púrpura transparente. Lendo o pseudo enigma, entre erros grotescos de grafia e um tom forçosamente misterioso, Morgana consegue sintetizar que a pedra roxa deveria ser iluminada pela luz solar para revelar os seus segredos. “Ele realmente acha que a gente vai esperar até amanhecer?”, brada Talita.“ESSAS MERDAS DE QUEBRA-CABEÇAS NÃO FAZEM SENTIDO NENHUM, PARECE RESIDENT HILL”.

O pânico misturado com o ódio e a revolta por terem sido presas por um captor tão incompetente tornam o ar tóxico para Talita e Morgana, que cochicham algo entre si e separam-se, executando tarefas distintas. Morgana cambaleia para a cama, emendando lençóis, colchas e outros tecidos resistentes numa corda improvisada. Talita reúne trouxas dos seus pertences e tenta amarrar com as malas num grande emaranhado de pano.

Ao notar o que está acontecendo, Astolfo volta a falar, com o objetivo de jogar areia no que aparentava ser uma fuga, despejando uma torrente de xingamentos. “Eu já falei que as janelas são vedadas sonoramente, pedir ajuda não vai adiantar”. “Exatamente” diz Morgana arrancando a TV da parede com Talita, “Vedadas sonoramente, mas não indestrutíveis”. Assim, lança a TV contra a janela, que se despedaça em milhares de cacos que precipitam-se junto ao televisor da SemprTo Sheta. Finalmente, conseguem ver o céu de luar intenso e poucas nuvens. Depois de várias piscadas, notam que, no prédio, imediatamente em frente, há um painel de luz também controlado por Astolfo, que balbucia ofensas e anúncios vazios coibindo a saída delas dali, ao informar que lá embaixo não há nada, mas, ao mesmo tempo, que se elas forem até lá, vão se foder.

Ignorando categoricamente os letreiros, ambas organizam seus pertences embaixo da janela e preparam as cordas. Uma maior e mais grossa, outra menor, com a ponta amarrada nas malas. Quebram os pedaços maiores de vidro que ficaram pendurados e jogam as cordas para o lado de fora. Morgana dá as ordens, explicando como poderia funcionar a saída da forma mais segura possível e Talita contribui sugerindo como descer as malas. Ambas bolam um plano para que a fuga seja a mais tranquila possível.

É acordado que Morgana irá na frente — sob forte protesto de Talita, vendo que a perna da sua namorada começa a perder a cor, ainda mais… — e abrirá delicadamente a janela do apartamento abaixo, puxando as coisas que chegariam em seguida e, logo após, Talita se pendurará na janela, concluindo a fuga do apartamento infernal.

Uma janela alta tem seu vidro destruído. Há um filtro verde na imagem.

Após um breve período de preparação, Morgana coloca a carabina nas costas e começa a descer.

Em certo ponto, uma das amarras do lençol se solta por vários centímetros, fazendo Morgana deslizar na parede externa do prédio, ser içada para longe e voltar, indo ao encontro da janela do apartamento abaixo, estourando o vidro com seu peso. Morgana é completamente engolida pelo breu do apartamento, sendo possível ouvir o baque surdo de vários ossos se chocando.

Talita se apavora e joga as malas de qualquer jeito, esticando a corda no ponto mais distante do prédio e voltando, em movimento pendular, se chocando diretamente com a janela e soltando mais cacos de vidro, seguidos por um pequeno gemido. Sem perder tempo, Talita se pendura na corda e, assim que está completamente além da janela, percebe pela tenacidade da corda que os pedaços de vidro restantes estão corroendo o lençol. Ela tenta acelerar o processo de descida, mas nota que quanto mais rápido vai, mais a corda rasga. Tentando imitar o movimento do pacote das malas, ela se afasta da parede com um chute e mira a janela num último gesto, ao mesmo tempo em que a corda se rasga por completo e ela entra pela janela, batendo em suas laterais.

Talita cai em cima do pacote das malas e escuta um gemido excruciante. Ela estava em cima do pacote e o pacote em cima de Morgana. Num pulo, ela sai e afasta as malas, livrando sua companheira. Elas se abraçam e compartilham cheiros. “Tá tudo bem agora, a gente tá em paz”. “Só quero ir de volta pra minha Terra”, sussurra Morgana.

Gradualmente, ambas começam a ouvir cochichos vindo de todos os lados da escuridão. Sussurros atravessam o breu e vão se tornando mais audíveis. “Elas entraram por trás? Como porra a gente não pensou nisso?”. “Eu sabia que elas não iam entender o mapa, ninguém nunca vê o tapete, embaixo”.

Num estalo elétrico, as luzes se acendem. Morgana e Talita notam que estão cercadas.

Em todo lugar onde o olho bate há verde menta e marrom barro, as cores da empresa. No teto há um letreiro gigante com essas mesmas cores, formando a palavra TERRAINT. Uma multidão está vestindo camisas com a logo da locadora de apartamentos, chapeuzinhos de aniversários, confetes, serpentinas e pompons. Eles demoram alguns segundos, atordoados, como se não estivessem esperando que a luz se acendesse naquele exato momento. Boa parte das pessoas está de costas para elas, pessoas essas que dão um pulinho em 180º e começam a festejar roboticamente como se aquilo tudo não devesse estar acontecendo. Todos gritam um “SURPRESAAAAA” esticado, alguns terminam antes, outros esticam sílabas diferentes e todos falam em tons diversos, tornando uma cacofonia atrapalhada e extremamente estranha. Tem gente que bate palma, outros só assobiam timidamente e tudo parece muito deslocado. Um homem forte, branco, trajando um terno e segurando um microfone, parecia ser o mestre do que aparentava ser uma cerimônia. Ele se apresenta como Humberto Fagundes, famoso ator de TV que, na ocasião, interpretou a voz de Astolfo. Ele felicita as hóspedes e chama uma criança que está ao lado que, por sua vez, deixa um bouquet de flores com Morgana e aplaude copiosamente. Talita e Morgana sentem as extremidades de seus olhos e bocas quase racharem de tão abertos. A incredulidade quase fragmenta seus crânios. Elas passam alguns vários segundos paralisadas, o que dá vazão a Humberto começar o seu monólogo.

Ele fala sobre como elas eram sortudas por participarem do primeiro Reality Scape Game da TerrainT, produzido em parceria com as empresas KRIEG, AmpliFY, SemprTO Sheta e Bufalus Brazilis e televisionado para todo o mundo pelo portal internacional da marca — de fato, há até uma equipe de produção audiovisual que prontamente se organiza e começa a rodar ao vê-las. Uma pickup de DJ, com um deles acoplado no equipamento, várias dançarinas, funcionários nerds em computadores conectados em sistemas de câmera de segurança do apartamento acima e um senhor baixinho, rechonchudo e suinamente rosado, com ares aristocráticos, apoiando as mãos em seus suspensórios, podiam ser vistos entre a quantidade de gente que entupia aquele apartamento.

Rompendo a paralisia, Talita vomita ódio e metralha acusações sobre todos os detalhes sórdidos, desde que elas entraram no apartamento. O senhor rosado, que veio até a frente, se apresenta como Brian Christof, CEO da TerrainT. Ele faz pouco caso e diz que nada foi de verdade, tudo fez parte do jogo. Talita cospe fogo salientando que sua companheira foi frequentemente machucada desde que entrou, levando inclusive um tiro de carabina.

“Vocês não tem motivos para reclamar, é um jogo de realidade, isso tudo faz parte e é legal, usando como base o novo decreto de liberdade corporativa do nosso Líder Supremo. Além disso, há toneladas de prêmios em dinheiro e créditos dentro da plataforma TerrainT. Vocês não leram as atualizações dos termos e condições de serviço? Mandamos diversas vezes para vocês!”.

Uma força inominável começa a borbulhar pelos dedões dos pés de Talita e Morgana, cozinhando verticalmente, até incendiar o topo de seus cérebros. Num golpe ágil, Talita acerta uma coronhada com o revólver na cabeça da criança, que desmaia imediatamente e cai chupando dedo e roncando num felpudo tapete que ali estava, ao mesmo tempo que Morgana puxa a carabina das costas e solta a trava de segurança. Ela e Talita se entreolham, sentem suas mãos tornarem-se brasas e urram a plenos pulmões, descarregando seus dedos nos gatilhos.

Uma sinfonia de destruição e morte é orquestrada pelas duas, fuzilando todos aqueles que não estavam desmaiados no tapete. Todas as menções dos letreiros e marca da TerrainT ganharam um adicional de design de decalques de bala realísticos. Todo o mar verde menta tornou-se vermelho. Faíscas explodem de tudo que é elétrico e as lâmpadas se apagam, fazendo os rostos de Morgana e Talita serem iluminados apenas pelo fogo bradado de suas armas. Há destroços e fumaça por todos os lados. Quando o último corpo cai, Morgana solta o gatilho da carabina. Talita continua gritando e atirando com o revólver que estava sem balas há muito tempo. Morgana dá-lhe um tapão na cara

“EEEEEEEEEEEEEEI! ALOU! VAMOS EMBORA!”

Talita cata o pacote das malas de um lado e, do outro, se encaixa embaixo do sovaco de Morgana, içando-a para saírem dali. Ela chuta a porta da frente do apartamento e logo estão descendo pelo corredor com as lâmpadas defeituosas que ainda piscam freneticamente.

Do lado de fora, o mesmo motorista do KRIEG espera tão ofegante que chega a se engasgar. Pede ajuda por seu rádio comunicador, mas ninguém responde além da estática. Fala consigo mesmo: “calma, é só transportar os pacotes pro ponto de…” mas antes de terminar seu raciocínio, a porta de frente do prédio é aberta com um pontapé de Talita e vários disparos são feitos atravessando o pára-brisa. Morgana arrasta o cadáver do motorista e joga as malas e a carabina atrás. Depois, se joga no assento do carona e entope-se de balinhas. Talita assume o volante e arranca.

Um luxuoso carro preto sai em disparada, serpenteando a selva de pedra megalopolitana que viola a linha do horizonte, prateada por um luar intenso.

O poster principal de Termos e Condições & que simula a bandeira brasileira com uma foto esverdeada de prédios na Vila Buarque em São Paulo, um letreiro com o título da história centralizada numa faixa de angulação idêntica ao da bandeira brasileira, porém com fundo preto e letras amarelas e um letreiro superior centralizado que evitencia o autor: UM ARGUMENTO BEZERRAMOS.CC. Um jogo sombras subliminarmente fazem o losango e o círculo da bandeira e há váriás gotas de sangue pingadas em cima de tudo.


Feito com a colaboração de Mônica Barros, Everton Agner, Amanda Azevedo e Ju Carneiro

Consultoria em Smart House: Stephanie Luna

Revisão Geral: Larissa Brito


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