FLERTES

O dia em que me encontrei com deus.


Trilha Sugerida

Foi como eu vi num filme um dia. É clichê, mas tudo ficou em câmera lenta.

Via as ferragens dilacerarem minha carne e os fragmentos do para-brisa serem jogados na minha cara. Meu corpo estava quase completamente fora do Palio, mas Daniel, meu amigo que dirigia, estava com o cinto de segurança e tinha poucos arranhões. A menina que estava sentada atrás tinha seu pescoço num ângulo estranhíssimo, senão impossível. Estava morta e se eu continuasse sangrando daquele jeito também iria embora.

No horizonte uma luz branca estourou e me ofuscou. Num clique eu estava em pé ao lado do carro. Era tudo branco, menos a estrada, a Scania e o Palio enfiado em sua traseira. Olhei para o carro e me vi jogado entre os destroços no capô. A menina ainda estava no banco de trás, toda ensanguentada, mas Daniel não estava mais lá. Senti algo e me virei.

A poucos centímetros do chão Deus estava. Tocou seus pés descalços no asfalto e olhou pra mim. Era Deus, mas não era Deus. O cabelo longo vermelho sangue, a pele clara, os olhos es-mel-ralda. Boca afilada, alta, seios túmidos e uma enorme tatuagem de asas nas costas. Deus possuia a forma da mulher que mais amei na minha vida. E da minha boca só escorregou uma palavra:

— Caralho…

Ele sorriu e me chamou pelo nome.

A voz, pelo menos, não era dela.

— Opa.

Demorei mais uns momentos. Fazia muito tempo que não a via, ou pelo menos seu corpo. Chorei desesperadamente, mas não saiu expressão ou lágrimas.

— Você sabe que isso é covardia, né?

Mais uma vez um sorriso foi esboçado daqueles dentes lindos. Mais covardia ainda é que eles não possuíam os aparelhos ortodônticos que nunca tinha visto sem. Assim aquele corpo estava ainda mais estupidamente lindo. Destruidor e absurdamente sublime.

— Você sabe que é covardia usar o corpo dela só porque você sabe o que ela significa pra mim e isso vai facilitar muito mais o diálogo entre nós, né? Isso é psicologia básica. Não se envergonha, Deus?

A risada de canto da boca se mostrou novamente. Deus estava me irritando de verdade agora e assim que pensei isso ele engoliu a porra do sorriso e falou:

— Perdão, dessa vez não estava rindo de você, mas do que você me chamou.

— Deus?

— Sim, sim, ainda não me acostumei com esse nome.

Levantei-me e — Me levantei?! Não me lembro de ter senta- Mas que caralho! Muito menos me lembro desse banco de praça aparecer no meio do asfalto do nada!

Continuei a falar com ele.

— Isso não tem lógica. Faz sete anos que não acredito em você e vivo muito bem assim e mesmo assim, segundo a Bíblia, como nego o Espírito Santo, cometo o pecado sem perdão mais grave e deveria “descer” na mesma hora.

Ele respondeu categoricamente.

— Pecado é censura, o Espírito Santo não existe e a Bíblia… A Bíblia é uma merda — falou e esticou a mão.

O que vou tentar explicar nesse parágrafo é um tanto quanto complicado, mesmo tendo apenas três segundos de duração. Ao falar “A Bíblia é uma merda” no primeiro segundo uma grande e antiga Bíblia se materializou um metro em nossa frente, no próximo segundo a mesma Bíblia ardeu em chamas e no último segundo as cinzas desapareceram antes de tocarem a neve.

— Eu estou aqui porque você fechou a vida com um saldo positivo. Você nunca roubou, nunca fez o mal deliberadamente…

— Mas já tentei me matar.

— Sim, sim, claro, mas não tem problema, sabe.

— É um ato de covardia. E outro pecado sem perdão.

— Muito pelo contrário, tirar a própria vida é um ato de bravura.

— Então tirar a vida de outras pessoas também é?

— Não. Esses sim são os covardes que não tem coragem de resolver seus problemas se matando e matam os outros. Você já pensou como seria o mundo se cada assassino antes de cometer homicídio se matasse?

— Não — Respondi sinceramente.

— Se os Bush cometessem suicídio antes de mandar pais de família deliberadamente para a morte certa na guerra. Se cada político nojento tirasse sua própria vida antes de matar pobres de fome e descaso. Esse mundo seria muito bom. Realmente muito bom. Deus era a favor do suicídio.

— É, mas Caim matou Abel e você o desgraçou — alfinetei.

Quando abri a porta do teleférico um unicórnio, um advogado com boas intenções, o Papai Noel, o Saci Pererê, um político correto, uma mula sem cabeça, uma mulher virgem, o Monstro do Lago Ness e um adolescente brasileiro inteligente atravessaram meu caminho.

Pra coroar o coelhinho rosa da Páscoa deixou um ovo Diamante Negro, meu preferido, em minhas mãos. Olhei irritado pra Deus. Aquele rosto que eu tanto amava estava me olhando com sarcasmo.

— Se você acredita em Caim e Abel vai ter que acreditar nesses que passaram aí também — colocou.

Deus era altamente irônico e cético como eu.

Pisávamos na grama agora.

— Céu, Diabo, pecado. Isso é tudo historinha pra manipular vocês. Religião é uma coisa fabricada não só nesse planeta. Por isso ri quando você me chamou de Deus. Esse não é meu nome. A religião inventou isso tudo. Vocês inventaram isso tudo. Você é um ateu estudioso, não um ateu idiota que só quer ser do contra. Você é ateu pois estudou as religiões, você sabe o que o Rei Constantino fez. Foi ali que ele inventou o Deus cristão. — Inventou você — refutei.

— Não. Não me inventou porque não sou Deus. Porque Deus não existe.

Deus era ateu.

Enquanto andava placas de metal faziam barulho sob meus pés.

— Tá, então o que agora?

— Agora vou te levar. Eu disse que você está com saldo positivo. Está na hora de você sacar o que investiu na vida.

Dessa vez eu ri.

— A vida é um investimento então…

— A vida é um investimento.

— Então eu vou viver feliz por toda a eternidade?

— Eternidade?

Na mesma hora um vampiro passou correndo na minha frente.

De novo ele me olhou com ironia.

— O que então? Pra onde você vai me levar?

— Abra — ele apontou para minhas mãos.

O ovo da páscoa ao contrário dos cenários, das minhas roupas e das de Deus não haviam se transformado em coisas aleatórias. Abri o ovo em formato de diamante.

E zerei minha conta.


2011

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