Alice


Considere ouvir a trilha sonora sugerida para complementar a leitura

Após descansar a agulha na música que queria no disco de seu SS 9000, BERNADETE, 78 anos, vai em direção à sua poltrona na sala de estar. Pega sua revistinha preferida e, simultaneamente, ao sentar em sua confortável poltrona surrada, a campainha toca. Ela coloca seus criptogramas cheios de enigmas para resolver ao lado de um lápis na mesinha de centro e vai atender. Já em cima da escadaria da entrada, uma bela moça de cabelos negros brilhantes acena para ela. A música do toca-discos escapa para a rua.

Dona Beta está fazendo palavras cruzadas calmamente na primeira imagem. Na segunda abre a porta para Célia.

—  Bom dia, Dona Beta!

— Bom dia, mia fia  —  fala Bernadete, embasbacada com a beleza da menina, mas disfarçando muito bem.  —  Não quero comprar nada, viu? Já basta semana passada, que viero aqui umas cinco veiz vendeno tapeué e ainda…

CÉLIA, 27 anos, solta uma delicada risada.

—  Não, Dona Beta! Olhe, meu nome é Célia Silva. Antes de qualquer coisa, desculpe atrapalhar sua tarde. É que eu tô fazendo uma pesquisa pra um documentário da universidade sobre os arredores. Vai ser ligeiro, não vou tomar muito do tempo da senhora, não. Juro.

Curiosa, Bernadete apoia-se na porta.

— Universidade daqui? Tem nada de filme aqui em Bananêra não, mia fia…

Célia sobe um degrau, enfática.

— Daqui de Bananeiras, não. Estudo na Universidade de Rio Tinto.

Bernadete parece confusa e indica ter algo para falar, porém não o faz, se desapoia e abre a porta.

— Apôis olhe, venha pa dento, saia do sol. Eu já tava ino terminá meu chazin mermo…

— Chá num calor desses, Dona Beta? — pergunta Célia, entrando e fazendo uma breve análise do interior.

A decoração era de uma típica casa nordestina, com todos os seus berimbelos, arquitetura e móveis. Já as paredes eram repletas de pinturas, cartazes de filmes, expositores de discos antigos e figuras de ação.

— Chá gelado, né? Essas época é quente demais, num vivo sem um chazinho pra refrescá — fala dando as costas para Célia e indo em direção à cozinha.

— Tá certíssima, Dona Beta — diz Célia, sentando-se na poltrona da sala, puxando uma caneta esferográfica e um delicado caderno moleskine.

Na cozinha, Bernadete rapidamente mói e joga pétalas de hibisco no infusor, corta finas fatias de laranja e gengibre e, já com tudo nas canecas, finaliza com um grosso fio de mel, canela e gelo. Volta para a sala com o chá na bandeja, complementada por biscoitinhos amanteigados.

— Diga como é que tu sabe meu apelido, porque ele vem de Elizabete, minha irmã. Só quem me conhece mais que me usa essa alcunha — fala enquanto estaciona a bandeja na mesinha entre as poltronas.

Célia solta uma risada e concorda com a cabeça. Tenta tatear o assunto pelas beiradas.

— Ah… Isso faz parte da pesquisa que já iniciei pelas redondezas. Como já falei com alguns familiares seus, conheci esse apelido. Sei também que a senhora é uma pessoa direta, então não vou perder tempo e vou direto ao assunto: eu tô fazendo um mapeamento sociogeográfico em vídeo da região nos últimos anos e já falei com Seu Osmar e Dona Ana do mercadinho, com Dona Olívia da farmácia, Samanta do salão… Todo o panorama sobre a cidade que preciso pro meu trabalho está traçado. Exceto um ponto que insiste em não vir à tona.

Com a caneca virada na boca, Bernadete arqueia a sobrancelha, uma indagação expressada fisicamente. Célia entende e começa.

— Dona Beta, eu gostaria de falar sobre Alice. Ela é um dos poucos assuntos que faltam pra o meu trabalho.

— Alice…? Que Alice?  — perguntou automaticamente, até que seu cérebro deu um estalo quase audível. Ao fundo, a luz de um abajur oscila momentaneamente.

Bernadete teve a impressão de que todas as paredes ao seu redor distorceram-se para perto dela. Sua respiração desacelera e a caneca pesa toneladas, antes de pousar tremulamente na mesinha.

— Alice? A que morava aqui do lado? Aquela menina?!

Célia parece confusa.

— Sim, Alice Vilas… Aparentemente, todo mundo tá evitando falar dela. Mas, ao mesmo tempo que desviam dela, seu nome foi o que mais se repetiu, Dona Beta. Por isso cheguei aqui sabendo.

Bernadete solta uma risada triste, entendendo a conexão, mas não a expõe verbalmente.

— Num falam o nome dela com razão — retruca a senhora.

Bernadete mostra consternação. Puxa as palavras-cruzadas, rabisca qualquer coisa, aparentando testar seu lápis, mas é só um movimento mecânico para varrer seus pensamentos. Olha para o retrato em cima da mesa do canto da sala, onde há uma versão mais jovem dela abraçada a um senhor negro imponente, e, no centro da foto, uma versão feminina do que parecia ser uma mistura dos traços de ambos. Levanta-se, em seu tempo, e vai para seu SS 9000.

— Olhe, eu num gosto nem um poco de contá essa história, Silvia… - diz trocando o disco.

— Célia…

— Sim, Célia. Célia Silva, né? Misturei as coisa. - Bernadete volta à poltrona, empunhando sua revistinha. - Minha cabeça né mais a de antes, por isso fico forçano e exercitano — gesticula levemente com sua revistinha de criptogramas e palavras-cruzadas. — O que tô dizeno, mia fia, é que eu não me sinto bem contano essa história. Nem lembrava mais de Alice, e isso porque fiz questão disquecê.

Nesse momento, ela direciona um delicado olhar nostálgico para a fotografia na mesa.

— Mas aprendi que está aberta a falá sobre isso é um jeito de resolvê os pobema. Principalmente… — joga um gole de chá na garganta — os que ficaro pa trás.

Ávida, Célia exibe um compreensível sorriso e descansa a esfera da caneta no papel.

— Ótimo! O que a senhora pode me dizer sobre ela?

Dona Bernadete se encosta lentamente na confortável poltrona, como se estivesse engolfando-se em memórias. Chá numa mão, criptogramas noutra.

— Alice Vilas. Bom… Primeiro tenho que falar dos pai, né? Eles era muito próximo, porque quando eles chegaro aqui na casa do lado era só namorado. Meu véi ajudava eles com os pobema que aparecia na casa, e eu sempre faço pão e dou pros vizinho. Aqui na comunidade, todo mundo convive bem junto, até pra gente sabê quando alguém vem de fora. Desse jeito, uns ano depois, quando ela ficou grávida, eu ajudei como pude. E quando a menina nasceu… Olhe… Pense numa menina estranha, moça! Nem chorá no parto ela chorô. Só veio aprendê a falá lá pelos cinco ano. Aliás, ninguém sabe como foi isso, porque ela nunca fez nenhum barulho até os cinco, mas do nada descambotou a falá como gente grande com uma ruma de palavra difícil.

Lentamente, Bernadete entra nas penumbras de suas memórias. As imagens esmaecidas, a priori, vão gradualmente tomando cores vívidas:

— Antes de aprendê, sabe-se lá com quem, ela nunca fazia barulho. Nunca. Nunca chorô, nunca gemeu, nunca nem reclamô de nada! Tinha dia que a mãe achava estranho o silêncio d’um bebê que nunca chorô de madrugada. Ia lá no berço, e Alice tava lá, parada como uma boneca de pano, calada, as bila de olho bem aberta olhano pro teto. Nem pedir comida ela pedia, era os pai que tinha que sabê as hora.

— Já maior, ela num gostava de brincá cas coisa colorida que os pai dava, não… Invéis disso, sempre sinteressava nas coisa mais perigosa: fósfro, palito de dente, chave de fenda… Ela saía catano e levava pro quarto. Numa festinha de aniversaro, ela ganhou um presente, e todos os convidado pediro pra ela abri. Era uma boneca linda, daquelas de cabeça de porcelana e corpo de pano e plástico. Pela primeira vez, a gente viu ela sorri. Jogou a boneca pra cima, como quem brinca cum bebê, e sumiu numa carreira em direção à cozinha. Voltou com a pexêra enterrada no bucho da boneca, jogou a faca de lado e a boneca toda esfolada na mesa e começô a vasculhá as entranha de espuma dela como se tivesse procurano algo. Quando se tocô que num tinha nada ali, fechô a cara e bateu a porta do quarto, deixano a boneca toda arregaçada no meio dos convidado da festa. Tanto a famia do pai quanto da mãe ficaro tudo abestalhado, e até hoje me pergunto o que mulesta aquela menina tava procurano…

— Anos depois, quando eu tava lavano rôpa no quintal, vi ela sentada no gramado, calada, sufocano o cachorro da casa com uma mão e, na otra, apontava uma caneta no olho do bicho. Eu já tinha visto aquela pirraia fazê muita merda. Várias veiz ela ficava me olhano, parada, na única janela de lá que ficava de frente pra janela daqui. Eu andano em casa e, quando via de rabo de ôi a janela, via aquelas bila azul medonha e aquela boca fina e comprimida, como se tivesse esperano eu caí da escada. Por causa desse caso do cachorro, resolvi falá com os pai dela e contá tudo o que eu via ela fazê. E aconteceu o que a gente da vizinhança imaginava: os pai dela já sabia de tudo, já tinha noção das coisa — até muito mais do que eu, claro — de como tinha algo muito errado com aquela menina.

— Pra eles, foi a gota d’água o negoço do cachorro. Quando era só estranho e num fazia mal pra ninguém dava pra tentá resolvê na conversa e na educação, né? Mas quando muda pr’uma ameaça de uma vida, uma atitude mais séria divia sê tomada, e ligeiro! Até tentaro conversá com ela, mas tava muito na cara que tinha algum negoço estranho, alguma mazela séria. Ela não respondia como gente normal. Parecia que algo tava ocupano o corpo daquela criança, que respondia a gente como um adulto com mais experiência de vida que a gente e agia como uma… Varêi! Sei lá o que aquilo parecia…

Bernadete tosse, voltando para a sua sala. Toma mais alguns goles de chá gelado para calibrar a garganta. Assim que volta a falar, dessa vez, num clique, suas memórias são recobradas.

— Voltano… Com os pai já tudo desesperado, eles decidiro internar ela num hospício.

— Passaro vários mês até eu ouvir falá dela de novo. Quando acabou o ano, os Vila me convidaro pra festa deles. Tinha recentemente perdido meu véi — novamente ela fita a fotografia em cima da mesa do canto — e Bruna, mia fia… Bem, ela tinha ido vivê sua vida já desde cedo, e os Vila ficaro meio sentido, né? Uma véia como eu morano só numa casa dessas é perigoso.

De súbito, Bernadete interrompe-se. Nota algo em sua revistinha de criptogramas, na página de palavras-cruzadas. Resmunga consigo: “nome do meio de Charli Chapli, sete letras”. Solta um suspiro de reconhecimento quando sete letras imaginárias flutuam sobre sua cabeça enquanto ela soletra uma por uma: “S-P-E-N-C-E-R”. Célia continuava prestando atenção no que Bernadete falava, tão focada que parecia estar hipnotizada. Notando isso, a senhora volta a si e continua.

— Onde que eu tava mermo? Sim! Pois é, eu já tava só, mufina, e eles me convidaro pra festa deles que ia comemorá a primeira visita de Alice depois da internação. Dissero que tava quase totalmente curada, o que achei bem estranho por tê passado poco tempo, pelo menos pro tamanho da infermidade dela, né?

— Mas, na festa, ela tava mermo muito diferente. Parecia que tinha uma luz na cara e nos cachinho dourado dela. Até mais corada ela tava. E ela ria! Eu fiquei abestalhada… ela ria! Quando me viu, veio me agarrá e tacou um bêjo na minha bochecha, na frente de todo mundo. Tinha carinho e ternura pra dá e vendê. Falava pra todo mundo que queria pintá quando crescê e ia pintá todas as natureza do mundo, um quadro por veiz. Trouxe até umas coisinha que fez no hospício e era tudo lindo, tudo cheio de cor. Tinha conseguido focá em algo que preste invéis das merda que ela fazia antes. No meio da festa, ela fez um anúncio e me deu uma das tela que fez. A pintura de um cachorro. O cachorro que ela tinha sufocado e ameaçado com a caneta, meses atráis, arrudeado de cor.

Cachorro triste pintado com muitas cores.

— Tu é muito nova pra sabê, mas, na nossa idade, a gente não consegue mais segurá líquido, e tenho que ficá mijano o tempo todo, com o perdão da palavra. Já tava cheia de vinho e fui pro banhêro do andá de cima me aliviá. Terminei e, quando abri a porta, Alice tava logo do outro lado. Aqueles mesmo zói azul estranho de antes. Toda boniteza que ela mostrava agora poco tinha mudado pra como se ela tivesse com o cão no côro. Seus ói parecia… Parecia uns buraco vazio. A festa era lá embaxo, e eu tava sozinha com ela no primeiro andá. Falano entridente, com o quexo travado e com uma voz que não era dela, começô:

Alice enfrenta Dona Beta no andar de cima.

— Sou eletrocutada todo santo dia. Eles me dão remédios que me fazem querer comer minha própria cara. Me torturam com instrumentos da Inquisição. Tudo isso é culpa sua. Sou pequena agora e não posso me defender, mas, quando crescer, vou voltar pra buscar você. Vou consumir sua vida. — Alice chega bem perto de Bernadete agora, encarando-a, olhando pra cima. — Você vai sussurrar “não”, mas ninguém vai ouvir. Nunca esqueça disso. — Não sei se foi o vinho que bebi demais, mas posso jurá que vi os ói dela ficano vermeio.

— Quando ela desceu as escada e voltô pra festa — continua Bernadete, com a voz já embargada e tremendo um pouco —, continuô seu papel de menina iluminada e curada. Os pai nem imaginava o monstro que tinha agora, mais do que nunca, porque agora, além de tudo, no hospício, ela tinha aprendido a escondê quem era de verdade.

— Quando lembrei do quadro do cachorro, joguei fora. Tinha sido uma piada de mau gosto, ou mau agouro… Ou os dois.

Bernadete respira fundo depois de toda essa sequência. Aparenta exaustão. Toma um gole de chá e faz uma careta, notando que ele tinha esquentado e não estava gostoso como antes. Abaixando a caneca, Célia tinha entrado em seu campo de visão. Ela tinha um olhar petrificado e um sorriso de canto de boca assustador.

Uma canecada de chá revela que Célia é Alice.

Lentamente desfez-se da peruca que usava e seus cachos dourados cascatearam do topo de sua cabeça.

— Deveras espetacular a quantidade de detalhes que você lembra, mesmo estando caindo aos pedaços.

O coração de Bernadete bate na glote. Automaticamente, sua respiração para, seus globos oculares arregalam tanto que quase caem do crânio, e ela tenta gritar, mas o susto tinha sugado seu ar. ALICE, 27, aproveita a impotência da senhora e levanta da poltrona com a caneta na mão. Bernadete só tem tempo de estourar a caneca na cara de Alice e tenta ir em direção contrária, por cima da poltrona. Alice crava a caneta nas costas de Bernadete, perfurando seu pulmão. Ela tenta gritar, mas Alice é mais rápida e tampa sua boca, girando a senhora e ficando frente a ela. Quando Alice levanta mais uma vez a caneta, Bernadete sente como se o tempo congelasse. Várias letras flutuam sobre a cabeça de Alice. CÉLIA SILVA. ALICE VILAS. C-É-L-I-A S-I-L-V-A se reorganiza em A-L-I-C-E V-I-L-A-S. “Véia burra!”, pensa Bernadete. O sangue jorra com alegria. Juntando o pouco de seu tempo e forças, enche os pulmões para gritar, mas, além de muito sangue, sai apenas um sussurro baixo: — NÃO. Alice dá uma gargalhada. A caneta, por fim, crava-se na coluna de Bernadete, que se desliga. Com olhos rubros, a loira puxa a caneta que estava entre as vértebras da senhora e crava ela na cavidade ocular de Bernadete. Mais uma vez, sorri. Levanta-se e bate a porta atrás de si.

Uma canecada de chá revela que Célia é Alice.


Ilustrações: _Ana Menezes | @menezescomz_
“Lovely Dog”: Leonid Afremov
Revisão: Suéllen Rodrigues

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