A Madrugada não é para Noobs

Fecho o portão atrás de mim. Olho para os dois lados. Penduro a coisa nos lábios e caminho pelas ruas escuras. Os problemas me invadem a mente mas entre um trago e outro se esvaem momentaneamente. A noite é fria do jeito que gosto.

Numa encruzilhada o cachorro enrola-se sobre paralelepípedos glaciais. Não preocupado para se mover para longe de um estranho como eu, mas não calmo o bastante para tirar os olhos de mim. Simpatizo. Meus coturnos param perto de suas patas marrons. Estico minha mão calmamente, cães de rua são maltratados diariamente e vivem com medo. Não foi esse o caso. Logo fechou os olhos para um sutil carinho no cocuruto. Resolvi agachar-me, mas meu companheiro canino assustou-se e bateu em calma retirada, com a cautela de vez ou outra olhar para trás serenamente.

Foi esse o caso sim.

Depois de oscilar em seus olhos e gestos o peso do custo-benefício de continuar recebendo carinho, deslizou calmamente rente ao meio-fio e sumiu atrás de um caminhão no fim da rua.

Paro um instante nesse entroncamento. Torno-me o cão por alguns segundos. Quando noto que estou sendo burro, sento no batente da padaria, não tão vulnerável. Não demora muito, passa um homem velho mas claramente ativo em uma bicicleta duplamente carregada com caixas de plástico de feira. Ambas vazias. Dia longo de trabalho, talvez.

— Ei boy, me arruma um cigarro desses.

Manobrou sua bicicleta para não me tirar de seu campo de visão e estacionou na borda da calçada.

— Brother, isso não é cigarro não… — respondi, sabendo que madrugada não é coisa de careta.

Depois de um breve delay, sorriu.

— É a “coisa”?

Escrevo com aspas para enfatizar quanto tempo não ouvia esse termo. Por identificá-lo o escuto com uma dose de satisfação e cumplicidade. Achei tão legal que preferi colocar esse termo logo na terceira frase desse texto.

— É sim — Falei, esticando a mão.

— Oxe, pode crer.

— E esse camelo ai? — Resolvi começar o papo. A madrugada não é para anti-sociais.

Como eu mesmo.

— É de onde eu trabalho, ali.

— Tu trabalha aqui em Jaguaribe? Oxe pode crer. É das áreas então.

Soltou uma risada que carregava boas décadas.

— Eu moro só 25 anos aqui — vangloriou-se.

— Eu tenho 25 e moro aqui quase a minha idade, estamos basicamente na mesma, haha.

— Eu saco tu. Tu não é amigo de Bob, né?

Nesse momento sinapses no meu cérebro digladiaram-se violentamente tentando espremer onde caralhos eu conhecia um Bob. Depois de 32 mortos e 63 feridos com gravidade, os neurônios desistiram e me vieram com o relatório que eu não conhecia ninguém assim.

— Não… Não conheço nenhum Bob, não.

— Bob, pô. Do cabelo rasta.

— Tô ligado não, brother…

Mudou de assunto.

— Tu num curte rock, né?

Existe a possibilidade de uma pessoa de coturnos por fora da calça jeans e com uma camisa preta do David Bowie fumando maconha de madrugada no meio da rua não curtir rock? Preferi jogar o jogo dele e transparecer que tinha engolido.

— Curto sim, tu tá ligado em mim mesmo então. Tu mora onde?

— Na Alberto de Brito.

— Oxe, eu moro naJoão Machado, pertinho.

— Massa. Tu não fuma não, né?

— Não. Eu odeio cigarro.

— Porra, atravessei a cidade procurando um cigarro.

— Segunda numa hora dessas é difícil, né.

— É.

Fumando o filtro, falei que eu poderia voltar com o outro. Explico rápido que não posso mais fumar onde moro e vou para as ruas a partir daquela noite. Ele diz que só vai deixar a bike onde trampa e volta pra gente trocar mais ideia. Sem parar de andar, viro o tronco, olho pra ele e pergunto seu nome.

— Nunes.

foto em preto e branco da rotatória entre floriano peixoto e primeiro de maio, em jaguaribe

Aperto em tempo recorde. No caminho um carro sai lentamente de uma garagem. Passo em direção de volta para o mesmo lugar. Dessa vez a luz lateral da padaria está acesa.

Uma coisa que maconheiro não gosta é de luz. Bela jogada, vizinhos.

Obviamente haviam notado a presença dos dois alguns minutos atrás. Não me senti seguro o bastante para sentar no mesmo batente e para piorar o carro que eu vi sair da garagem da rua anterior estaciona perto de mim, na frente da maldita luz. Pessoas saem do carro e outras da padaria. São familiares. Para me defender, boanoito o senhor sem camisa que saiu do volante e foi em direção a porta. Deve ter me sacado de antes e tá me vendo de novo agora. Me boanoita de volta enquanto pareço uma estaca esperando Nunes. Luz, muita gente, eu com a parada no bolso. A madrugada se torna barulhenta e meu juízo também, até escutar o chacoalhar de caixas de feira.

Nunes para a bicicleta perto de mim e nota a nova iluminação da área e os presentes. Dou dois passos em sua direção.

— Não rola mais aqui.

— Oxe, bora lá pra onde eu trabalho. Lá é de boas.

Meu isolamento cavernoso me fez esquecer o quanto a adrenalina dessas aventuras madrugais me deixavam a sensação de estar vivo por dentro.

Mesmo que seja uma sensação, as vezes é saudável mentir pra si.

Enquanto caminhava às 3 da manhã carregando uma coisa no bolso com um completo estranho ao lado eu me sentia realmente muito bem. Nada como navegar sem remo e sem vela para abrir mais os olhos. A madrugada não é para os mortos.

Nunes e eu trocamos mais ideias aleatórias. Vagas. Conversa de dois estranhos. Dois seres estranhos. Num momento ele notou que havia uma injustiça e resolveu resolvê-la.

— Qual a sua alcunha? — perguntou com uma estranha delicadeza.

— Você pode me chamar de Luiz.

Numa esquina me afasto de Nunes três passos largos. Não tinha notado que havia passado alguns metros do objetivo. Era um local de venda de galinhas já tratadas, oriundas do matadouro.

— O abatedouro é no Rangel. Tem um ponto de venda aqui e no Mercado Central — propagandeou.

O ponto de venda de galinhas onde Nunes trabalhava era tão sujo quanto um ponto de venda de galinhas poderia ser. As paredes brancas há muito não lavadas disputavam espaço entre rachaduras e descascados. Ao lado, um espaço coberto por telhas de fibra de cimento, preenchido por três cadeiras de plástico e mesas com cheiro de sangue ressecado por meses. Em todos os cantos destroços aleatórios que não tive porquê prestar atenção. As cadeiras cercavam um ralo branco que engolia a água espumante que capotava pelos poucos degraus do ponto comercial e escoava até ali. Levei um susto imperceptível ao notar que nessa parte coberta haviam mais dois caras. Um tinha um cabelo negro e fino dividido no meio, vestindo uma blusa preta. Suas feições deixavam claro sua origem interiorana. O outro usava um boné branco, tinha olhos bruxuleantes e uma ausência de camisa que exibia músculos tatuados com agulha e tinta de caneta bic.

É assim que fazem tatuagens na prisão.

Nunes aparentava ser o mais velho de todos. Seus cabelos lembravam um Bozo depois da velhice, com chumaços grisalhos flutuando apenas nos lados da cabeça. Trajando o uniforme no estabelecimento, foi pegar um banquinho para sentar no que aparentava ser o terraço daquele ponto comercial.

Sempre sou cauteloso.

— Essa galera é de boa?

Se não estivesse tão tarde Nunes teria gargalhado. Ao invés disso, preferiu dar um sorriso elegante.

— Todo mundo é de boa aqui — me viu sentar na cadeira de plástico, enfiar a mão no bolso, sacar e acender, e não esperou para dizer — fogo na Babilônia!

Passei para o de boné e escutei Nunes.

— A gente tava aqui tomando uma de boa e lavando o ponto.

— Cês tavam bebendo o que?

— Cachaça.

Meu diafragma fitou meu fígado de soslaio. Eu estava realmente afim de uma aventura.

— Qual cachaça?

Eles riram.

— Rapaz, sei não, isso já era outra garrafa — falou, mostrando que a cachaça estava numa garrafa pet surrada de refrigerante de 2 litros.

Beber sem saber nem a marca não parecia ser uma aventura tão atraente assim. Não toquei mais no assunto.

O de boné branco estava já calibrado. Me servia vários apertos de mão por minuto. Sentia-se grato. Quem não se sentiria quando um cara brota com um beck depois de uma longa jornada de trabalho?

Depois de tragos e goles, parecíamos colegas de longa data, inclusive por não saber porra nenhuma um do outro. Um dos momentos que ilustraram bem isso foi quando me queixei da minha falta de dinheiro e como ter um emprego como eles tem seria confortante. O de cabelos divididos, ao ver meu semblante e minhas roupas, fez uma pergunta ingênua, mas sincera:

— Oxe, e teus pais? Não te ajudam?

Nunes que estava sentado, estapeou o topo da coxa e quase cuspiu o beck no chão de cimento pela risada escrota que deu.

— Esse bicho? Mó cara de playboy, pô. Isso é filhinho de papai.

Passei bons segundos pensando se iria dar um soco verbal no estômago de Nunes. Resolvi ir leve e só dar um tapinha:

— Sim, tanto que meus pais estão quase me jogando na rua por não estar conseguindo emprego e ainda ser maconheiro.

Um breve silêncio se estendeu entre as moelas de galinhas e cinzas no cimento.

O de boné resolveu quebrar o gelo fazendo um elogio.

— Esse mato é bom pra caralho!

— É sim, dum brô do Rena. Se vocês quiserem posso descolar o contato.

Foi como se uma enorme sombra densa possuísse todos os nossos arredores. Uma tsunami de bad vibes tenebrosas. Os três mostraram um semblante soturno, com um leve traço de pavor.

— Não, não, não pô.

— Que nada mano, tamo de boa.

— Ok…

Vendo que a minha cara exprimia um largo “o que merda foi isso que acabou de acontecer?”, Nunes foi amigável o bastante para começar tirar a cortina do meio do papo.

— Semana passada mataram um ali na escola técnica que tava vendendo. Foi tenso o negócio.

— Deram quatro pipôcos na cabeça do bicho. Nessas horas da madrugada.

Entendi que eles tinham se equivocado completamente ao me interpretar, mas esclarecer “não sou traficante” seria o mais burro e incriminante a se fazer. Fiz a desentendida.

— Caralho… Que tenso. Tão perto da minha casa… Nem fiquei sabendo. Mas fizeram isso por que?

— Ah velho, porque era o território do cara, né…

— Faz sentido. Nunca tive treta por comprar, mas sei que esse tipo de coisa acontece. Quem foi que matou?

Nesse exato momento as línguas dos três se desprenderam da boca e se arrastaram como lagartas até se jogarem no limbo do ralo espumante.

Após alguns segundos, o tatuado resolveu falar algo, sem dizer nada.

— E a gente lá sabe…

— Ninguém sabe, né. Foi de madrugada.

Obviamente estava na hora do assunto ser mudado novamente, ou talvez simplesmente d’eu ir embora já que o beck não tinha sofrido quatro tiros na cabeça, mas havia morrido. Além disso, eu não era retardado o bastante pra beber álcool sem saber sua procedência. Ou jovem o bastante pra fazer isso de novo.

Há diferença entre ser jovem e retardado?

Não precisei divagar muito pra notar que já tava bom de vazar dali.

foto em preto e branco numa parada de ônibus na rua que separa jaguaribe do centro de João Pessoa

Uma sinfonia de motores rasgou o silêncio da madrugada como trombetas dos quatro cavaleiros automotivos do apocalipse. Quatro motos cavalgavam pela pavimentação, puxando mais dois veículos lotados de homens com olhos vidrados. O estouro de boiada atravessou a rua congruente a nossa. Pelo barulho monstruoso era impossível não prestar atenção neles. E eles nos fitaram por um bom tempo também.

Nós quatro assistimos aquela carreata soturna andar calmamente, todas as cabeças deles viradas pra nós, todas as nossas para eles, até sumirem na primeira esquina, por onde eu e Nunes viemos. Por terem olhado para a porta do estabelecimento aberta e garrafas de bebidas no pé do poste na calçada notaram que éramos dali. A madrugada não é para estranhos.

— Que porra foi essa? — perguntei enquanto o ronco rouco dos motores perfurava o silêncio de tarde da noite.

— Parece que tão em missão — soltou Nunes.

— Isso daí eles devem tão procurando algum ladrão — o de cabelos lisos não parecia muito preocupado.

Não precisei calcular muito pra notar que estava na hora de vazar dali. Girei meus calcanhares e fiquei de pé, ouvindo a rasga-mortalha mecânica amplificando-se mais uma vez.

Agora eles não estavam pela congruente, mas pela nossa rua. Passaram lentamente próximo a nós, encarando como se não fôssemos dali. Quando sumiram na esquina, me despedi meramente dos presentes.

— De boa. Aparece por ai qualquer dia, pô — disse Nunes, esperançoso com mais um beck surpresa.

Virei a rua e segui pra casa, tropeçando em um paralelepípedo solto num passo em falso pra se equilibrar e evitar uma queda, piso no mesmo cachorro que eu tinha visto no começo. Como ato reflexo ele morde meu calcanhar, fincando seus dentes na minha pele e saindo em disparada para um meio-fio mais seguro. Consegui me conter e não emiti nenhum som, manquei pelo portão de casa e tranquei a porta.

Já deitado na cama, ofegante e de olho fixo no teto branco, penso:

Melhor ficar por aqui mermo. A madrugada não é para noobs.


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